6 de outubro de 2017

A batida do coco de Nelson Rosa segue ecoando pelo chão

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Desde a década de 1990, Nelson Rosa conduzia um grupo de coco com destaladeiras de fumo de Arapiraca (Foto: Frederico Ishikawa/ Sesc Sonora Brasil)

A morte do lado de cá do Ocidente é sempre algo derradeiro. Como se nada se aproveitasse dessa metáfora da nossa real mudança.

Se nosso olhar se redirecionar para um ângulo mais espiritual, pode-se ver a morte como um estágio; não como um fim em si. O que fica é o que se construiu – ou se enraizou.

Com os pés no chão, Nelson Vicente Rosa se utilizou das duas possibilidades dessa expressão: sempre consciente e determinado, fez o coco de roda ganhar as fronteiras Brasil afora (a construção) e fincou a sola em seu solo sagrado, o Sítio Fernandes (a raiz).

Tanto foi como ficou. Conheceu o país todo levando o nosso folguedo para fora do estado alagoano, mas sempre recorreu ao seu cantinho, a ambiência rural. Esse era um dos dons de Nelson.

Com 83 anos, o embolador, poeta popular, cantador de coco e Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana nos deixou no último dia 15 de setembro. Mesmo dia de aniversário de um de seus 7 filhos, Vicente.

Sinal

Na Escola Estadual Senador Rui Palmeira, mais conhecida como Premem, no bairro Capiatã, quem era vigia virou porteiro. Este é José Vicente Filho, uma das crias do mestre Nelson. “Mas com um nome assim, como ele pode ser filho de Nelson?”, vocês podem perguntar.

“Quem sabe o que se passava na cabeça de meu pai há 54 anos atrás?”, brinca ele, revelando a idade recém-completada. “Outra curiosidade é que meus irmãos homens têm apenas ‘Santos’ e as mulheres, ‘Rosa’ no sobrenome”.

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O mestre Nelson Rosa faleceu no último dia 13 de setembro (Foto: Arquivo pessoal)

E ele fecha o portão e toca o sinal de uma aula para a outra no Premem, lembrando do pai querido. “Era uma figura de muita paciência e de uma memória incrível. A morte dele ainda é muito recente. A ficha ainda não caiu direito. Parece que ele ainda está por aqui”.

Segundo Vicente, desde julho do ano passado, Nelson vinha sentindo dores de dente e indo ao especialista, o que se findou depois na descoberta de um câncer bucal. Havia 14 anos que ele tinha parado de fumar. “Mas essas coisas às vezes voltam, né? Enfim, ele teve um infarto em 2011 e conseguiu se recuperar. Todo o nosso foco foi para o coração dele, com uma medicação orientada e um regime alimentar. O doutor disse: ‘Se depender do seu coração agora, você vive até os 100”, lembra.

Ele retirou o tumor na altura na bochecha esquerda e, junto, 5 cm dos músculos que outrora se articulavam para puxar o coco de roda. Foram feitos enxertos, porém mesmo assim ele ficou com o rosto coberto com uma espécie de máscara. E durante a radioterapia, o problema progrediu. Caso raro.

Antes de falecer, Nelson recebeu a visita do mestre Afrísio Acácio do Acordeon, do incentivador cultural Paulo Lourenço da Silva, o Paulo do Bar, e ainda de outro Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana, o folclorista, historiador, professor de Letras, escritor e escultor Zezito Guedes, o que o emocionou bastante.

“Dois dias antes de partir, isto é, no dia 13 do mês passado, um pessoal da TV Brasil esteve na nossa comunidade para captar umas imagens sobre as manifestações culturais nordestinas e eles já haviam entrevistado meu pai antes. Desde dezembro, ele vinha com dificuldade de saúde, mas nesse dia os olhos dele se abriram e se encheram de graça. Debaixo do umbuzeiro que fica lá pertinho de casa, ele ouviu as batidas dos pés no chão e sabia que o coco estava sendo mantido, estava sendo assegurado mesmo com sua iminente partida”, conta ele, ressaltando que a dança estava sendo gravada pela reportagem.

 

Confira na íntegra o CD “Cantos de Trabalho”, lançado pelo Sesc, com Nelson junto das destaladeiras de fumo. Ao lado delas, ele percorreu o país inteiro no ano passado, fazendo mais de 200 apresentações

Referência

O mestre Nelson Rosa nasceu lá mesmo no Sítio Fernandes, no dia 18 de dezembro de 1933. Aos 5 anos de idade, já estava maravilhado com o samba de pagode, uma espécie de antecessor do coco.

Ele estava com seus pais em uma festa no Sítio Cacimba Doce quando ouviu a música “Araúna” sendo proferida pela cantadora Maria Proteciano e viu uma grande roda se formar. Aquele evento lhe marcou profundamente.

E o pequeno Nelson foi crescendo e crescendo naquele ambiente de cantigas das tarefas de roça e nas tapagens de casa. “Nós trabalhávamos na roça durante o dia e, à noite, nos juntávamos em mutirão para ajudar a erguer as casas e aterrar o piso, em barro, acompanhado de tocadores de padeiro que animavam o pessoal e, a partir de então, este ritual se transformou em dança”, destaca ele ao jornalista Marcelo Amorim em reportagem feita no extinto jornal Tribuna de Alagoas, em 2001.

Até que seu padrinho Gervásio Lima o conquistou de vez com o coco, porque aquela dança agregava, juntava gente. Eram familiares, amigos, vizinhos, cunhados, irmãos e primos.

Fazia-se então a roda, um dos ícones que nos levam aos nossos ancestrais em volta de uma fogueira, festejando, ritualizando, agradecendo a bonança que era a vida em comunidade, a vida no momento presente, sem tirar nem pôr.

De acordo com o historiador Zezito Guedes, passaram-se alguns anos e seu padrinho desapareceu. Assim, o Fernandes se emudeceu. Até Nelson timidamente começar a cantar e a fazer emboladas lá no próprio terreiro de casa. E ele foi tomando gosto pela coisa e “assim renascia um coco de roça, com toda a força de um fato folclórico autêntico”.

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Ainda enfermo, o Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana recebeu visitas e homenagens em sua casa no Sítio Fernandes por figuras como Afrísio Acácio, Zezito Guedes, Paulo do Bar e os cineastas do Núcleo do Audiovisual de Arapiraca – Navi (Foto: Reprodução/ Facebook)

Então, essa manifestação foi ganhando corpo para além das cercas da zona rural, com um Nelson finalmente engajado na causa e trazendo consigo centenas de pessoas que o ajudaram a resgatar esse folguedo tão presente no repertório arapiraquense hoje em dia.

“Em poucas palavras, o mestre Nelson Rosa representou a nossa verdadeira cultura de raiz! A voz dos currais de fumo é a nossa voz. Atualmente você consegue ver, em trabalhos como os das bandas autorais arapriaquenses, a presença de seu legado. Um exemplo é o grupo de reggae rural Quiçaça, que bebeu bem desta fonte”, analisa o músico César Soares. “Tive a oportunidade de sentar ao pé do umbuzeiro e tomar algumas lições de vida com o mestre, que me fizeram olhar com ainda mais carinho para a nossa cultura local”.

E era isso. Ele conversava e conservava a todos e todas, sempre com uma discrição ímpar. Prova disso era quando ele ia assistir às apresentações culturais do projeto Cultura na Praça, que acontecem sempre às segundas-feiras na Praça Luiz Pereira Lima, no Centro de Arapiraca, em pleno dia da nossa tradicional feira livre.

“Lembro de inúmeras vezes avistar o mestre Nelson no meio do povo. Lá era o lugar dele. No meio da gente. Não havia distinção. Ele era como todo mundo. Mas, ainda assim, era um Patrimônio Vivo pelo seu saber cultural. Então, eu sempre o chamava para compor a nossa bancada lá em cima do palco e, às vezes, recitar alguma coisinha. Era sempre uma lição. O que fica agora é uma lacuna imensa em nossos corações e também na Cultura alagoana. Muito embora haja um rapaz jovem aí fazendo bonito e levando o coco à frente: é o Eduardo Kellvy Rodrigues. Ele tem um trabalho social muito bacana ali no bairro Santa Edwiges”, relata o mestre Afrísio Acásio do Acordeon.

E, de fato, o Eduardo vem se destacando não somente durante o período de São João. Há uma associação comunitária naquele bairro onde, durante todo o ano, ele ministra oficinas para as crianças e os adolescentes da região, ensinando coco de roda. E isso há 10 anos, tendo retomado há pouco o Arraiá Balança Mas Não Cai, cujo grupo principal tem representado bem o nome de Arapiraca em competições juninas locais.

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O jovem Eduardo Kellvy Rodrigues tem feito um trabalho social e tanto, com crianças e adolescentes (re)conhecendo o coco de roda (Foto: Samuel Alves)

Legado

“Meu pai nunca gritou comigo. E, de alguma forma, tentei repassar isso aos meus filhos. A lição que até hoje levo dele é a que a gente sabe o que é bom e o que é ruim. ‘Você só faz o ruim se quiser’. E foi nesse ambiente que meus filhos foram vendo o avô ser a grandeza que era e puderam presenciar no ano passado ele viajando o país inteiro em mais de 200 apresentações dentro do projeto Sesc Sonora Brasil, com as destaladeiras de fumo que o acompanhavam há um bom tempo”, pontua o filho Vicente, olhando para o relógio. Era quase fim de expediente no Premem.

Ele lembra que a mãe Francisca, agora com 77 anos, ficava impressionada como Nelson era requisitado em festas e eventos grandes, como a abertura do São João de Campina Grande e ainda outras investidas em São Paulo e Brasília décadas atrás.

“Quando ele voltava, era aquela alegria. Geralmente fazíamos as festas de fim de ano lá em casa mesmo. Temos um quintal bem grande e iniciávamos sempre com uma reza e a dança só parava com os primeiros raios de sol”, conta Vicente, dizendo que essa influência resvalou em seus filhos também, Weslley, de 22 anos, Wellerson, 19, e Wirley, 12.

Os dois primeiros fazem Ciências Contábeis na Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), contudo, assim como o avô, dominam o pandeiro e já dão os primeiros passos seguros no coco. E Wirley, o mais novo, gosta de poetizar o que Nelson também falava e recitava. “Está no sangue”, solta Vicente.

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A roda não pode se desfazer; a tradição continuará em Arapiraca (Foto: Lourdes Rizzatto)

“O coco é isso. É união. Meu pai viveu bem e ficou consciente até o último instante, sabendo que a coisa não ia parar por lá. O legado está continuando”, conclui.

A depender de outra filha dele, Regineide Rosa, o incentivo vai ser ainda mais acentuado agora. No Sítio Fernandes, há o Centro de Cultural Nelson Rosa, o qual ela busca apoio para realizar oficinas de folclore para que haja coro desse resgate sempre urgente das nossas tradições nordestinas e as coisas não ficarem ao léu, jogadas ao chão.

E, ao mesmo tempo, o instrumento maior do coco de roda é o chão. A batida de pé seria a baqueta resvalando na caixa dos peitos da Mãe-Natureza. Ela deixou o som para ser extraído e a Rosa de Nelson, exalada por quem sabe sentir.

 

Veja alguns vídeos sobre o nosso eterno mestre do coco de roda:

Aqui ele recita um de seus causos para o paulista Mario Cassettari, da Cia. Cabelo de Maria, em 2013.

Neste extenso vídeo, a Zóio TV conseguiu extrair importantes depoimentos de pessoas do convívio de Nelson e dele próprio, intercalando com mensagens dos diretores da Unimed Arapiraca, no começo da década de 2010.

Parte de uma reportagem especial feita pela TV Gazeta, em 2012, para o programa Terra e Mar

Sequência da matéria da TV Gazeta, agora mostrando de perto a batida do coco