Bar do Paulo: saiba o segredo da costelinha de porco da dona Antônia
Iguaria vem em um prato generoso, acompanhado de um mix de salada (Foto: Lucas Ferreira)
“Não tem segredo”. Com esta revelação de dona Antônia Carlos da Silva, de 75 anos, esta matéria poderia acabar por aqui. Mas ela ainda guarda alguns temperos.
A esposa do incentivador cultural Paulo Lourenço da Silva, 85, dono do saudoso Bar do Paulo, tem uma “mão boa”, como se diz aqui pelo Nordeste com quem possui o dom da culinária.
“O nosso bar ficou famoso nas décadas passadas pela boa música, pelo ambiente de vivências e discussões e, sobretudo, por causa do prato principal da casa: a costelinha de porco da dona Antônia”, conta Paulo, sempre com água na boca.
Paladar
A história de uma cidade é contada também através das papilas gustativas. A Cultura carrega muito molho, muito sabor. E a gastronomia é ponto alto neste sentido. Em 93 anos de existência, dada a sua Emancipação Política, a cidade coleciona paladares.
Um deles em específico é extraído da cozinha simples da residência anexa aos fundos do Bar do Paulo, fechado há cerca de cinco anos devido à idade avançada de seus proprietários.
Apesar disso, a costelinha de porco continua lá, assando. “E não havia e nem há segredo nenhum na feitura dela. Apenas faço com vontade e amor, coisa que acaba caindo no prato”, diz dona Antônia.
Cheiro da costelinha invade a esquina das ruas São Luiz e Dom Jonas Batingas, onde outrora funcionava o Bar do Paulo (Foto: Lucas Ferreira)
Humildade em pessoa, ela diz que aprendeu a cozinhar muito nova ainda. “Meu pai e minha mãe iam para a roça, lá em Palmeira dos Índios, quase que na divisa com Pernambuco, e me deixavam em casa para fazer o almoço. Eu tinha uns 12 anos quando comecei. Naquela época, era normal os pais darem esse tipo de responsabilidade para os filhos menores. E eu peguei todas as dicas com minha mãe, desde de como matar um frango até temperá-lo”.
Antônia tinha 10 outros irmãos para alimentar. Então caprichava sempre. Foi assim que foi aprimorando seu fogão. “No início, o Bar do Paulo servia outras coisas também”, revela.
Insosso
Paulo foi ainda jovem para São Paulo. Tinha seus 20 anos cravados nas costas. Um matuto na cidade grande, literalmente. Lá ele conheceu a noite, o jazz e o compromisso com o saber. Seu salário como garçom era quase todo revertido em vinis, livros e jornais.
Viveu lá na capital paulista por mais outros 20 anos. Desses, 13 já ao lado de dona Antônia, que também tentou a vida por lá chegando a trabalhar em uma fábrica de costura.
A vinda brusca de volta para Alagoas foi insossa. Ela se deu por conta de um trágico acidente familiar, onde morreram sobrinhos dos dois em uma batida de carro em plena véspera de São João. O ano era 1973.
De imediato, o casal veio para Arapiraca para cortejar e se despedir dos mortos, além de dar o suporte necessário para a família naquele momento difícil.
Resolveram, então, com os dois filhos pequenos Paulo Celso e Délia Mara, se estabelecerem em Arapiraca. Com a ajuda do cunhado Belarmino, os dois conseguiram comprar o local que fica na esquina entre as ruas São Luiz e Dom Jonas Batingas, no bairro Ouro Preto.
Paulo, Antônia e os dois filhos posando para foto em frente à antiga bodega, em 1975; olhando para a família, o garoto Josival Menezes, conhecido hoje como “Jean Notícias” (Foto: Arquivo Pessoal)
No entanto, lá funcionava uma oficina de radiadores de carros. Demorou um pouco para eles assumirem o recinto como casa, de fato. Mas logo o cheiro de graxa deu lugar ao cheiro das saborosas comidas de dona Antônia.
A princípio, Belarmino deu a ideia de montarem por lá uma farmácia. Mas dona Antônia insistiu em uma bodega. E se vendia de tudo – desde pães a vassouras, desde fósforos a cachaça. E foi com a ajuda dessa última que o hábito se tornou cliente do estabelecimento. Já era setembro de 1973.
“Sempre perto do meio-dia, as pessoas chegavam e pediam uma ‘lapada’. Para completar, eu oferecia um tira-gosto, dependendo do que eu havia feito naquele dia na cozinha: cará (às vezes, eu comprava até 9 kg de peixe), torresmo, galeto com batatinhas cozidas, caldinho de feijão, rabada, costelinha de porco e por aí vai”, comenta a cozinheira.
Fenômeno
Daí à frente, mais e mais gente frequentava o lugar, que deixava de ser bodega para ser bar. Duas mesas foram dispostas nos 16 m². “A partir dali, nós crescemos para trás. Enveredamos para o fundo”, brinca Paulo, referindo-se à expansão que ocorreu no estabelecimento tomando boa parte da residência deles. “No fim das contas, o bar virou extensão da nossa casa”.
Conforme ele crescia, a procura pela música e pelos papos também estavam na mesma proporção. Havia muita MPB, jazz, blues, rock, música clássica, africana e indiana, conversas sobre o Cinema Novo, a política atual (o Brasil estava em plena ditadura militar), filosofia, sexualidade, história, vida.
Como pano de fundo no céu da boca de todos, a costelinha de porco virou unanimidade. Este prato saía aos montes todos os finais de semana.
Local era point na noite arapiraquense e a sala de vinis de Paulo, o grande epicentro (Foto: Arquivo Pessoal)
“Nós comprávamos a carne de porco sempre à mesma pessoa no Mercado Velho [onde funcionava anteriormente o Mercado Público Municipal, na Rua Domingos Correia, bairro do Centro] e a procedência era das melhores. Assim que eu chegava em casa com as peças, tratava ainda pela manhã com vinagre de vinho tinto, sal – uma boa quantidade nos ossos da costela –, alho e tempero moído na hora. Às vezes, ao invés de tempero (que é cominho e pimenta-do-reino), eu botava só o cominho. Pronto. Deixava essa química toda agir na carne o dia inteiro e só ia mexer nela à noite quando o bar abria. Está aí o segredo”, sorri dona Antônia.
Para acompanhar, ela fazia uma “cama” de alface para pôr a costelinha em cima, com direito a uma porção de macaxeira frita.
Antes disso, a carne ia ao fogo e ficava submersa no óleo bem quente. Sempre virando com cuidado para não queimar. “Eu nunca sofri uma queimadura em quase 40 anos de Bar do Paulo”, orgulha-se.
Em um prato disposto logo ao lado, uma salada repleta de cores em cortes rústicos: tomate, cebola, mais alface, pimentão, cenoura, beterraba e azeitona. Tudo isso com um banho de vinagre e azeite para finalizar.
“E é isso. O nosso único truque era bem servir quem andava pelo bar. Alimentávamos as pessoas pelos ouvidos e pela boca, sempre com o que tínhamos de melhor. A costelinha do Bar do Paulo, na verdade, é a ‘costelinha da dona Antônia’. Foi um fenômeno porque até gente de fora do estado já chegava aqui curioso querendo provar. E para provar, quem queria tinha que se sentar um pouco e apreciar a vida passando com a gente. Era muita gostoso. Nos dois sentidos”, conclui o mestre Paulo.
Apesar de o estabelecimento ter fechado há pouco tempo, dona Antônia ainda pensa em comercializar a receita e atender a pedidos. “Estou pensando no caso”, ri mais uma vez, com o cheiro pairando no ar sempre novo.
Veja o documentário premiado “DJ do Agreste”, lançado em 2007 pela diretora Regina Célia Barbosa, com apoio direto da Ideário Comunicação e Cultura, DKS Produções e Boca da Noite Cinema & Vídeo.