20 de outubro de 2017

A cultura negra em Arapiraca: raízes quilombolas nunca antes vistas

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Os potes de barro no Pau d’Arco são resultado das oficinas locais (Foto: Genival Silva)

Ser negro sempre foi motivo de orgulho. Por trás da melanina acentuada, estão histórias ora de vitória, ora de preconceitos e desumanidades descabidas.

O povo afrodescendente tem essas máculas na pele, outrora açoitada pela ignorância de pessoas da mesma espécie que se julgavam “superiores” – talvez apenas em covardia.

E o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravatura de vez. E isso foi um processo gradual; não algo feito de uma hora para a outra. Começou com a Lei Eusébio de Queiroz em 1850, passando pela Lei do Ventre Livre e pela Lei dos Sexagenários até a Lei Áurea, em 1888.

Nesse meio tempo, pessoas que foram tiradas de suas terras de origem e escravizadas à força tinham esperanças de, finalmente, poderem ser livres de novo.

E foi em Arapiraca, quando este lugar ainda nem se chamava assim, que vários novos lares foram se firmando com alcunhas de outras árvores nativas: Pau d’Arco (ipê) e Carrasco (pau-viola).

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O Carrasco realiza sempre no mês de novembro a culminância “Carrascultura”, trazendo à tona as manifestações culturais da região (Foto: Arquivo pessoal)

Quilombada

Há, em Alagoas, 68 comunidades remanescentes dos quilombos e duas delas na Terra de Manoel André. E pouco antes da chegada do fundador em 1848, já havia gente por aqui.

É o caso, por exemplo, do Carrasco onde data-se a presença de pessoas nos idos de 1802. “A gente tem relatos de que a ‘Festa de Santa Luzia’ acontecia por lá desde esse ano. Quem mandava nas terras aqui era uma capitã chamada Antônia Rosa, que recebia ordens diretas de Portugal. As mucamas dela vieram de Angola, como a escrava Bilinda, que teve uma filha que casou-se e teve 18 filhos. O Carrasco começou assim”, conta a presidente da Associação de Desenvolvimento da Comunidade Remanescente de Quilombo do Carrasco, Genilda Queiroz.

Segundo ela – que é também conselheira Estadual de Igualdade Racial e representante das mulheres dos quilombos de Alagoas e do Comitê Estadual de Saúde da População Negra –, o nome “Carrasco” surgiu através de uma árvore que tinha em abundância por lá. Chamam-na hoje de pau-viola. “Naquele tempo, só existia mata e algumas casas de taipa”.

Os filhos dos escravos, já em época de libertação, faziam potes e panelas de barro para venderem na feira livre de Arapiraca, quando a cidade ainda era povoado de Limoeiro de Anadia.

Como não havia transporte na época, todos iam de burro ou mesmo a pé com as mercadorias na cabeça, por meio de uma trilha. O problema é que o Carrasco era muito, muito longe da feira e a jornada geralmente era difícil e cansativa.

É curioso que a casa de Antônia Rosa ficava a oeste do povoado, onde atualmente é um campo de futebol, um ambiente de lazer e convivência. A localidade nos dias atuais dispõe de escola, Unidade Básica de Saúde (UBS) e transporte coletivo.

“Hoje o Carrasco não é mais aquele de 200 anos atrás. E nós nos orgulhamos de sermos negros apesar dos preconceitos que ainda sofremos. Ser negro não nos faz ser melhor nem pior do que ninguém, mas, sim, vencedores. Nós, da sexta geração, não sofremos como os nossos bisavós: vivemos em um mundo livre e cheio de tecnologia, um mundo moderno. O nosso muito obrigado aos que lutaram para que, nesse momento, possamos estar aqui contando essa história, a nossa história”, completa Genilda Queiroz.

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Genilda Queiroz está à frente da associação do Carrasco desde 2008; apesar de ser cristã, não deixa de lado suas verdadeiras raízes e propõe o conhecimento no lugar da ignorância (Foto: Genival Silva)

Mesmo evangélica, ela conduz os trabalhos na comunidade com maestria. “Eu não confundo as coisas. Minhas raízes sempre serão estas de matriz africana”, diz, ressaltando que por lá existe um terreiro para os praticantes da religião afro.

Em 2008, o Carrasco recebeu a certificação da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura (MinC), como sendo ambiente remanescente dos quilombos. Assim, a associação nasceu e hoje ela dá oficinas de modelagem, pintura, reciclagem, artesanato (potes e panelas de barro, vassouras de palha, balaios), culinária (utilizando raízes da região, como o inhame, para a confecção de coxinhas, por exemplo), dança afro e capoeira.

Atualmente, a associação atende a 164 famílias do entorno, fazendo entrega mensal pelo Programa do Leite, recadastramento do Bolsa Família, cessão de cestas básicas e sopão e comemoração do Dia das Crianças, entre outras finalidades.

Nas lavouras, sobressaindo dos quintais ao longo do horizonte, muita mandioca, feijão, fumo, milho e abóbora, mostrando a força da agricultura no Carrasco.

No próximo mês, haverá por lá o projeto Carrascultura, onde uma culminância de ações sempre acontece no mês da Consciência Negra, ou seja, novembro, com sanfoneiro, banda de pífano, quadrilha e demais manifestações artísticas. No próximo dia 28, o Carrasco estará na Expoagro, em Maceió, representando Arapiraca.

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A professora Laurinete Basílio enfatiza a presença da tradição oral repassada pelos mestres do saber na Vila Pau d’Arco, com figuras como Zé Pretinho, dona Mocinha e dona Terezinha (Foto: Genival Silva)

Correntes de ouro

Tudo começou em 1885 no Pau d’Arco, com o ex-escravo Manoel Tomás da Silva, já liberto, procurando terras na região. Ele saiu do Tabuleiro dos Negros, em Penedo-AL, com algumas mudas de roupas, ferramentas e uma bolsa cheia de correntes de ouro oferecidas pela senhora que o deu a alforria.

De acordo com a professora de História e pedagoga Laurinete Basílio, uma das fundadores da Associação de Desenvolvimento da Comunidade Remanescente de Quilombos da Vila Pau d’Arco, chegando onde hoje é o local, ele teve que comprar as terras – justamente com as correntes de ouro – do capitão João de Deus Florentino, senhor de engenho de família portuguesa. Estabelecendo-se lá com a esposa Josefa da Silva, teve cinco filhos.

Logo, um filho de um primo de João de Deus com uma escrava, José Januário Pragelo, também fez moradia naquele lugar repleto de ipês amarelos e brancos – daí o nome “pau d’arco”. Era dos galhos dessa árvore que se faziam arcos para possíveis caças.

Vindo de Rio das Cruzes, em Limoeiro de Anadia-AL, Luiz Tolintino foi o terceiro negro a formar uma família na localidade na mesma época.

A agricultura familiar predominou na região com o cultivo de mandioca, feijão, milho, batata e macaxeira. Apenas no segundo ciclo do fumo de Arapiraca, quando a cidade ganhou status de “Capital Brasileira do Fumo” na década de 1970, que essa planta começou a dar mais vazão nos terrenos da Vila Pau d’Arco.

“A associação, a partir do ano que vem, vai realizar estudos de religiões de matriz africana. Essa abordagem é muito importante e já acontece na nossa Escola de Ensino Fundamental Luiz Alberto de Melo, juntamente com a história do surgimento da nossa vila”, ressalta Laurinete.

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Na associação do Pau d’Arco também funciona o Ponto de Cultura Identidade e Cidadania Afrodescendente (Foto: Genival Silva)

Apesar de ter vínculo com a Igreja católica, a própria professora deseja fazer um mestrado na área, tanto para saber mais sobre suas raízes como para “ajudar a comunidade a resgatar esse sentimento de pertencimento”.

A associação é também o Ponto de Cultura Identidade e Cidadania Afrodescendente, dentro da rede arapiraquense, e tem 332 famílias cadastradas que contam com grupos de capoeira, grupo de percussão afro (alfaia, pandeiro, xequerê), grupo de dança Pérola Negra, oficinas de mosaico, artesanato (potes de barro) e gastronomia (licores, feijoada, dobradinha).

“Antes havia muito mais discriminação e o local aqui era chamado antigamente de ‘Pau d’Arco dos Negros’. A coisa hoje mudou. Temos mais força e direcionamento. Sabemos que somos um povo rico culturalmente falando. Sempre fomos”, reforça a professora, olhando para as paredes repletas de referências locais como os griôs – mestres da oralidade, que repassavam seus ensinamentos e memórias através de rodas de conversas.

Prova dessa vitalidade toda é o projeto “Construindo a Identidade Afrodescendente” que já vai para a sua 13ª edição este ano, nos dias 17 e 18 de novembro, com trabalhos sendo feitos na escola e um desfilo cívico pela rua principal do Pau d’Arco.

E aproveitando a deixa, eles vão participar no próximo dia 30, ocasião dos 93 anos de Emancipação Política de Arapiraca, do desfile cívico-militar fazendo uma representação de um quilombo pelas ruas do Bosque das Arapiracas, novo local de concentração.

Só assim, pelo viés da informação objetiva e do conhecimento pleno sendo praticado no dia a dia, que a ignorância e o preconceito vão se esvaindo – como a importância da cor da pele de alguém.