13 de outubro de 2017

“Blues” de Alagoas: o canto das destaladeiras de fumo de Arapiraca

destaladeiras4O canto das destaladeiras surgiu diante de um trabalho árduo (Foto: TV Brasil/ Reprodução)

Pouco depois da abolição da escravatura nos EUA, os negros estavam ainda sob esse peso existencial: por que, afinal, uma espécie escraviza e se acha superior entre os seus?

Agora libertos, eles tentavam a sorte nas lavouras, onde tinham certa familiaridade nos trabalhos de outrora nas fazendas. Mas agora o diferencial é que o negro tinha nome.

A vida, ainda assim, era difícil. Reerguer-se do nada, com tantos traumas físicos e psicológicos, é tarefa realmente de um povo forte.

Foi com esse cenário como pano de fundo, em meio aos campos de algodão do Mississipi, que o blues surgiu pela primeira vez, no final do século 19.

O lamento estava nas letras e na progressão rítmica vocal cantada por quem colhia aqueles tais algodões. Não à toa, em inglês além da cor azul, “blue” é sinônimo de “triste”.

Do extremo sul do país estadunidense até o meio do estado de Alagoas, aqui em Arapiraca, há uma distância relevante. Mas o sentimento une.

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Varais varando o horizonte: fumo foi o “ouro verde” de Arapiraca no século passado (Foto: Reprodução)

Por volta de 1940 – quando o município tinha cerca de duas décadas de Emancipação Política –, assim como o blues, os cantos de trabalho dominaram os canteiros agrícolas de fumo no Agreste.

Tal qual os negros de lá traziam uma carga da música africana e folclórica, os cantadores do lado de cá externavam o lamento nordestino, pegando emprestado o improviso dos emboladores e as quartas dos violeiros e cordelistas, que usavam 4 versos para dividir seus atos.

Aparece aí o fenômeno do canto das destaladeiras de fumo de Arapiraca, que geralmente colocavam nas letras os assuntos do cotidiano:

Eu tô chorando, eu tô chorando,

Eu tô chorando é por você

Se você não acredita,

Vou chorar pra você ver

Como a cultura nordestina à época era muito mais embasada no patriarcado, o homem levava o sustento para dentro de casa. Então, também na roça, sendo copiosamente a figura “mais forte”, ficava com ele o trabalho mais braçal da prática de enrolar o fumo em corda.

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Já pronto, o fumo em corda era comercializado para todas as partes do país em grandes quantidades (Foto: Reprodução)

Voz própria

As mulheres tinham um papel não menos importante: retirar os talos das folhas de fumo por elas coletadas para, em seguida, serem postas em molhos e transformadas finalmente em rolo.

E a atividade envolvendo a fumicultura em Arapiraca era intensa naquele tempo – a cidade foi considerada a Capital Brasileira do Fumo, nas décadas de 1970 e 1980, quando houve o auge de sua produção do chamado “ouro verde”.

O trabalho muitas vezes era árduo, pois não havia os equipamentos necessários para o manuseio e para a não inalação das toxinas que saíam da folha de fumo molhada.

Surgiu até a Doença do Fumo Verde, uma espécie de intoxicação decorrente da nicotina presente na folha e acionada pela umidade, geralmente causada pelo próprio orvalho do ambiente. Um desses casos aconteceu com a dona Olívia Ferreira dos Santos, hoje aposentada com 70 anos (veja aqui).

Era nesse tipo de ambiente – ora triste, ora alegre pela força do querer – que as músicas acabavam por ecoar dentro dos salões e armazéns repletos da planta e de mulheres ao redor dela.

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Letras das músicas traziam todo o sentimento vivido pelos grupos de mulheres (Foto: Reprodução)

As melodias traziam uma unidade àquele grupo e tudo se tornava menos cansativos, já que muitas delas chegavam a destalar até mais de 100 kg de folhas de fumo por dia. Era este realmente o blues de Arapiraca.

“Esses cantos de trabalho, esses cantos das destaladeiras, foram cantos vividos por décadas. Desde o trabalho no campo, como também nos salões de destalação de fumo, onde as mulheres ali sentadas no chão, destalando essa folha do fumo, começavam a cantar”, diz a cantora Regineide Rosa dos Santos.

Eu estava forrando a cama,

A cama pra meu amor

Deu um vento na roseira,

A cama se encheu de flor.

Leva eu saudade!

Se me leva, eu vou!

Filha do mestre de coco de roda e Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana, Nelson Rosa, que faleceu no mês passado (leia matéria especial sobre ele aqui), Regineide conta que estas são também canções passadas de geração em geração, ‘de pai para filho’. “Versos improvisados dentro dos salões que caíram na boca do povo”.

Em 2016, ao lado do pai e de outras destaladeiras de fumo, ela percorreu o Brasil levando essa tradição para mais de 200 apresentações por meio do projeto Sesc Sonora Brasil, em teatros, concertos, praças e auditórios lotados.

Também no ano passado, o músico arapiraquense Janu lançou o seu “Lindeza II” e colocou a faixa “Teu Sorriso” para abrir o álbum – ela conta com a participação especial de destaladeiras do Sítio Fernandes.

“Tive a oportunidade de conhecer de perto o trabalho delas mais recentemente. Elas são demais! E esse tipo de canto tem vários elementos de nossos folguedos alagoanos, mas é genuinamente arapiraquense. Surgiu aqui e isso nos dá muito orgulho. É uma música que transborda muito sentimento”, pontua ele.

Com o declínio fumageiro, não há muitos salões espalhados mais pela cidade, mas a tradição e o folguedo vêm sendo mantidos nos versos e na memória do povo arapiraquense como uma das manifestações culturais mais marcantes em nosso enredo.

Folha de primeira

O galo cantou, cantou, moreninha

O dia amanheceu, amanheceu

Hoje aqui nesse salão, moreninha

Quem cantou melhor fui eu

Em 1977, os pesquisadores Maria Zélia Galvão de Almeida e Jilson de Almeida vieram para Arapiraca e documentaram a produção do fumo e o canto de trabalho das destaladeiras.

Esta rara montagem “Em Arapiraca, o trabalho canta” foi editada em 2007 pelo núcleo Intermeios da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

O resultado foi este registro audiovisual de aproximadamente 20 minutos, que se encontra no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros: